sábado, 31 de julho de 2021

Sobre minha dissertação...

Antes de começar….
 “Portugal é um país que recebe muito bem quem vem de fora!”. Essa frase ouvi de um senhor que me atendia em um café que fica ao lado da minha segunda residência em Portugal, poucos meses depois de aqui chegar. Para muitos portugueses, a opinião é a de que o país recebe estrangeiros de forma muito acolhedora e talvez isso realmente seja verdade. Mas será que sempre?
 
Minha trajetória até aqui
 
A experiência com o teatro de grupo no Brasil, desenvolveu em mim a necessidade de trabalhar em cooperação e em rede para driblar a escassez de investimentos e a falta de preparo de muitos gestores públicos da cultura dos municípios de menor porte do Brasil. Esta realidade torna imprescindível que agentes culturais se unam na reivindicação de direitos e oportunidades, entregando os indicadores nos quais as políticas públicas do setor possam ser estruturadas. Nesta busca, coletivos como a Fecate- Federação Catarinense de Teatro, atuam contribuindo e fortalecendo as políticas públicas relacionadas ao setor e reúnem grupos que compartilham formas encontradas para a manutenção de seus espaços, circulação de seus trabalhos e realizam festivais em suas cidades, criando assim, alguma dinâmica. Minha busca pessoal era por um formato de gestão no qual essas características pudessem ser potencializadas, mas também outros mecanismos de sustentabilidade e crescimento pudesse emergir dele.
 
A motivação para minha vinda a Europa foi, num primeiro momento, em 2012, quando conheci, através de um workshop oferecido do Sesc - Serviço Social do Comércio, Fabianna Mello Souza, ex-integrante do Théatre du Soleil, grupo de teatro francês que funciona com um modelo de gestão coletiva, pautada na horizontalidade e na colaboração. O grupo, fundado em 1970 tem como fundadora, Ariane Mnouchkine e conta hoje com aproximadamente 70 membros.
 
Em 2019, motivada pela inquietação de receber a notícia de um novo corte de verbas no setor e perceber a importância de encontrar novas saídas para a cultura, encontrei em Portugal a possibilidade de desenvolver todo o processo de pesquisa com o suporte da Escola de Artes e Design de Caldas da Rainha, em uma cidade com um porte populacional e de estrutura semelhante ao da cidade em que vivia na região Sul do Brasil. Esta experiência me aproximava do Theatrè du Soleil geograficamente, poderia abrir as portas para um possível estágio no coletivo e ainda me permitia conhecer e criar projetos, junto aos coletivos locais de Caldas da Rainha, buscando aproveitar a facilidade de falarmos a mesma língua.
 
Em nenhum cenário vislumbrado por mim, eu poderia ter suspeitado o surgimento de uma pandemia em escala global que nos obrigasse a reinventar nossos fazeres artísticos e nos prendesse em casa, justo quando me disponho (e preciso) de contato com este novo mundo que a mim se apresenta.
A partir do segundo semestre em Portugal, me via com minha liberdade para trabalhada cerceada por regras de saúde que hora fecham todos os estabelecimentos e hora abrem com restrições. Todo programação fica sujeita a estas normas que mudam o tempo todo. Diante disso, sair do país se torna impossível e o estágio em França deixa de ser uma possibilidade.
 
“Portugal é um país que recebe muito bem quem vem de fora!”.
Agora sim, já posso retomar daqui…
Esta é a frase que mais frequentemente repito para mim mesma. Talvez por sentir que por vezes, é verdade, mas quase sempre não. O antagonismo criado a partir desta frase impulsionou a mudança dos meus planos para pesquisa e por consequência, meus objetivos em Portugal.
 
Hoje, quase dois anos depois de chegar em Portugal, tenho a perceção de ter a minha frente três diferentes grupos sociais com os quais me relaciono e nem sempre percebo estes três grupos a relacionarem-se entre si. Um deles é formado por meus colegas de área de pesquisa, professores e outros alunos e professores da ESAD, bem como os integrantes de coletivos que de alguma forma, estão ligados a escola; o outro é formado por amigos que nasceram nas terrinhas e aldeias próximas a cidade, com costumes muito semelhantes aos da minha família do Brasil e que pouco se relacionam com a escola ou com o universo ao qual ela representa e o último grupo que cito e o da comunidade brasileira de imigrantes, principalmente feminino, que parece buscar relacionar-se com os outros grupos, mas não percebo esta relação ocorrendo efetivamente em duas vias.
 
Os muros e muitas vezes os abismos criados entre estes grupos me fizeram perceber aí a necessidade e também a oportunidade de criar um lugar onde estes grupos possam dialogar e ainda dentro desta perspetiva, um lugar onde outros grupos possam também protagonizar e compartilhar.
O que era possível oferecer e os objetivos eram muito evidentes. Dentro de uma perspetiva totalmente imigrante, eu não poderia fugir dos meus conceitos de origem na criação da mesma e este foi meu primeiro caminho. Uma casa brasileira em Caldas da Rainha, com um nome tão brasileiro quanto: “MALOCA”, inspirada na música de Adoniran Barbosa. Mas só depois de popular meu imaginário com todos os recursos com os quais eu poderia contar, percebi algo que para mim, era fundamental: Sendo a palavra de origem indígena e não sendo eu uma pessoa com ligações parentais ou outra relação mais intensa com esta cultura, apropriar-me deste termo não me deixava confortável.
 
Nesta busca e consciente de que meus processos sempre contam com a prática, parti para a fundação de um coletivo e, a partir dele buscar a Nossa Casa Criativa (novo nome que surgiu nesta jornada e com o qual eu estava totalmente a vontade). Alinhar num projeto, meios de tornar os sonhos e espectativas de diferentes pessoas algo real é algo complexo e muitas vezes, impossível. Depois de 5 meses dedicado a um espaço de co-working criativo, de onde poderiam surgir a programação do coletivo, o mesmo se desfez e fiquei, novamente só, e desta vez sem um nome para meu projeto.
 
Para conseguir colocar um projeto que nasceu de mim em prática, talvez fosse preciso que eu o levantasse do papel, contando com colaboradores e não co-autores. Afinal ele já foi escrito na minha cabeça e no meu imaginário e só depois de estar em pé poderia conquistar o olhar do outro.
E esta foi a lição que tirei desta experiência.
E depois de alguns meses de pausa e quase desistência, retorno a este, que é hoje meu projeto para Portugal e para meu tempo neste país.
 
“Está pensando que aqui é a casa da mãe Joana?”
 
 Assim minha mãe falava quando me colocava a fazer as coisas a minha maneira. E agora, diante da realidade que se apresenta, não vejo outra forma de fazer as coisas, senão a minha maneira.
 
Portugal nunca pareceu fazer parte de mim até eu perceber nas expressões da minha mãe e da minha avó, o quão estreitas eram estas relações. Expressões como esta acima fizeram parte da minha vida e da minha construção identitária e agora só quem eu sou pode ser sólido o suficiente para levantar qualquer ideia do papel e fazer dela algo real.
 
Casa da mãe Joana
 
Joana era o nome da minha avó e também da mãe dela. Minha bisavó era imigrante assim como eu e contava que quando chegou no Brasil, precisava andar por muitos quilómetros para conseguir vender uma cabeça de repolho.
Embora eu não tenha andado quilómetros para vender nada nesta terra, meu percurso desde minha chegada foi (como a da maioria dos imigrantes que chegam no país) de reinvenção. Não só por conta do fator pandêmico que se instaurou no mundo, modificando hábitos e impedindo planos, mas também pelo fato de ser uma estrageira, recomeçando em um novo país.
Foram quase dois anos vividos até o momento em que escrevo estas linhas e neste percurso, muitas foram as pessoas que cruzaram meu caminho nestas mesmas condições.
Esse contato trouxe à tona a necessidade de protagonismo existente para pessoas imigrantes. Se este protagonismo é político, como não haveria de ser também cultural?
Onde estas pessoas podem encontrar espaço onde possam mais do que produzir culturalmente, possam fazê-lo em colaboração e diálogo?
 
A força da Expressão
 
Voltando o olhar às minhas avós, mulheres que, diferente do que a expressão acima sugere, não tinham nada de permissivas e liberais, eram mulheres duras e coordenaram a gestão familiar que as cercavam até a morte. Nelas busco a inspiração para colocar a “Casa da mãe Joana” em prática.
Sei que esta expressão significa desordem e caos, mas os processos culturais caminham por vias orgânicas e nem sempre facilmente organizáveis.
 
“(…)
Você tem sede de quê?
Você tem fome de quê?
 
A gente não quer só comida
A gente quer comida, diversão e arte
A gente não quer só comida
A gente quer saída para qualquer parte
 
A gente não quer só comida
A gente quer bebida, diversão, balé
A gente não quer só comida
A gente quer a vida como a vida quer
(…)”
 
(Marcelo Fromer / Arnaldo Antunes / Sergio Britto)
 
Inspirada neste trecho da letra de “Comida”, música da banda brasileira Titãs, reflito sobre o que nós, agentes, artistas, técnicos, produtores e gestores artísticos e culturais queremos. Queremos existir. Queremos produzir e viver em um ambiente criativo e livre. Queremos espaços que nos estimulem a criatividade e no qual possamos nos sentir abastecidos de todos os nutrientes necessários para a produção e criação.
 
E se o público e os consumidores de arte e cultura tivessem a oportunidade de participar de processos, entender os meios e tornarem-se agentes na ativação de espaços e projetos culturais? Como seria? Utopia? Talvez… Mas dentro desta perspetiva, quais os meios mais fazíveis para criar um ambiente cultural de criação, produção e diálogo? E porquê isso se faz necessário?
É mesmo tão importante um lugar, uma sede, um espaço? Por que motivos e quais as necessidades técnicas mais importantes?
E os ambientes já existentes? Por quais motivos não são suficientes?